Ao contrário do que os adventistas e TJs dizem: O Arcanjo Miguel não é o Senhor Jesus Cristo
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O Arcanjo Miguel não é o Senhor Jesus Cristo
por zwinglio · agosto 13, 2015
Por Zwinglio Rodrigues
Rafael continua a relatar como Miguel e Gabriel foram mandados a combater a Satã e seus anjos… Deus no terceiro dia manda o Messias, Filho seu, para quem tinha reservado a glória de vencer ali: Ele, com o poder do Pai, chegando ao campo e ordenando a todas as suas legiões que ficassem firmes, entranha-se com seu carro e com seus raios pelo meio dos inimigos, persegue esses desgraçados, que não têm ânimo de resistir-lhe[…]
John Milton em “Paraíso Perdido”
John Milton em “Paraíso Perdido”
Introduzindo
As Testemunhas de Jeová e o Adventismo do Sétimo Dia, seitas bastante populares, ensinam que o Arcanjo Miguel é o Senhor Jesus Cristo. No caso das Testemunhas de Jeová, Miguel é Jesus, a primeira pessoa criada diretamente por Deus. Como esta seita não é trinitariana, o Arcanjo Miguel, Jesus, não é divino. No tocante ao Adventismo, segmento dito trinitariano, o Arcanjo Miguel entendido como sendo Jesus Cristo, é uma das pessoas da trindade. Esta denominação segue a conclusão de Ellen G. White[1]:
Moisés passou pela morte, mas Cristo desceu e lhe deu vida antes que seu corpo visse a corrupção. Satanás procurou reter o corpo, pretendendo-o como seu; mas Miguel ressuscitou Moisés e levou-o ao Céu. Satanás maldisse amargamente a Deus, acusando-o de injusto por permitir que sua presa lhe fosse tirada; Cristo, porém, não repreendeu a Seu adversário, embora fosse por sua tentação que o servo de Deus houvesse caído. Mansamente remeteu-o a Seu Pai, dizendo: ‘O Senhor te repreenda’.
Noutro lugar, ela diz:
O termo “arcanjo” só aparece no singular na Bíblia; em 1 Tessalonicenses 4.16. a vinda de Cristo e precedida da “voz de “arcanjo”; finalmente, Daniel 12.1 afirma que Miguel lutará pelo povo de Deus concluindo, com isso, ser Jesus Cristo o mesmo Miguel. [2]
Ela disse mais:
Ainda mais: Cristo é chamado o Verbo de Deus. João 1:1-3. É assim chamado porque Deus deu Suas revelações ao homem em todos os tempos por meio de Cristo. Foi o Seu Espírito que inspirou os profetas. I Ped. 1:10 e 11. Ele lhes foi revelado como o Anjo de Jeová, o Capitão do exército do Senhor, o Arcanjo Miguel. [3]
Mervyn Maxwell, adventista e autor do livro História do Adventismo, escreveu: mostrou como os adventistas denominam o arcanjo Miguel:
Jesus, o Filho de Deus e nosso Salvador. Pelo fato de ser tanto Deus quanto um Anjo (no sentido muito especial que antes expusemos) […] o Arcanjo. Miguel, o Cristo glorificado. [4]
Um artigo do estudioso adventista Doug Batchelor chamado Who is Michael the Archangel?[5] (Quem é Miguel, o Arcanjo?) tenta provar biblicamente esse falso ensino. Em seu artigo, Batchelor destaca cinco referências bíblicas onde estão as citações sobre o Arcanjo Miguel. Três delas estão no livro do profeta Daniel, outra em Judas e a última em Apocalipse. A partir dessas passagens, ele vai estabelecendo relações com outras referências que o leva, no final de sua análise, à certeza de que o nome Miguel é mais um dos nomes próprios do Senhor Jesus Cristo. Claro, que o empreendimento dele não logra êxito. Esse texto que escrevo é uma espécie de refutação às conclusões de Batchelor.
Espanta estudiosos protestantes como o comentarista John Gill e João Calvino, por exemplo, defenderem esse ensino. John Gill[6] comentando Judas 9, afirma claramente que o Arcanjo Miguel é Jesus Cristo, o príncipe dos anjos, a cabeça de todo principado e poder. Comentando Apocalipse 12:7, Gill diz:
Jesus Cristo […] é o arcanjo, o primeiro dos primeiros príncipes, a cabeça de todo principado e poder, que está do lado do povo do Senhor, defende sua causa, defende suas vidas, e os salva.[7]
Calvino escreveu:
Alguns acreditam que a palavra Miguel representa Cristo, e eu não me oponho a esta ideia […] eu incluo o sentido que eles relacionaram este à pessoa de Cristo.[8]
Outros protestantes como Matthew Henry e o comentarista J. P. Lange também concordaram que Miguel é o Senhor Jesus. Assim, Miguel não possui natureza angélica, mas divina.
Apesar de alguns nomes importantes de estudiosos protestantes ratificarem esse ensino antibíblico, é certo que a maioria esmagadora dos estudiosos protestantes não subscreve tal doutrina. Em minha opinião, essa gama de estudiosos está com a razão.
Para iniciar a discussão, esse breve texto está dividido em quatro tópicos: quem é Miguel segundo as tradições judaica e cristã, Miguel o Arcanjo ou o Arcanjo Miguel, “o Senhor te repreenda”, uma rápida discussão sobre os vocábulos hebraicos echad e rison e resultados da confusão adventista.
Quem é Miguel segundo as Tradições Judaica?
Há apenas um arcanjo na Bíblia que é o próprio Miguel. Ser um arcanjo é estar dentro da mais alta hierarquia na angelologia bíblica. Porém, na literatura pseudepígrafa de Enoque, não apenas Miguel é chamado de arcanjo, mas Gabriel e outros cinco anjos, quase sejam: Uriel, Rafael, Raquel, Saracael e Remiel.
No livro apócrifo de Tobias 12:15 aparece essa ideia de sete (arc) anjos: “Eu sou Rafael, um dos sete anjos que assistem diante da glória do Senhor e têm acesso a sua presença.” Conforme informações de Champlin, “a tradição sobre a existência de arcanjos não fazia parte original da fé judaica, mas foi pedida por empréstimo da cultura persa. Por isso mesmo, os arcanjos são mencionados no Antigo Testamento nos últimos livros (cronologicamente falando) do Antigo Testamento, nos livros apócrifos e pseudepígrafos do Antigo Testamento, e em alguns livros do Novo Testamento.” [9]
A respeito daqueles anjos, William Barclay escreve: “Os judeus falavam dos “sete anjos da presença”, aos quais também se referiam, de maneira muito bela, como “os sete anjos brancos que vêm primeiro” (1 Enoque 90:21). São os que em seu idioma se denominavam arcanjos e que segundo a tradição ocupam um lugar de privilégio na presença de Deus (Tobias 12:15).”[10]
No Antigo Testamento, Miguel aparece apenas no livro do profeta Daniel (10:13, 21; 12:1). Já no Novo Testamento ele aparece na epístola de Judas (v. 9) e no Apocalipse (12:7). Em nenhuma dessas passagens é possível confundir o arcanjo com a Segunda Pessoa da Trindade, como, por exemplo, as Teofanias do Antigo Testamento envolvendo o denominado Anjo do SENHOR.
David H. Stern apresenta Miguel dentro da tradição judaica como um (arc) anjo:
A aggadah enumera muitos outros anjos, por exemplo, Rafa’el e Aza’zel, cuja menção de 1 Enoque é citada em 2Ke (2Pe) 2:4. Além disso, a tradição expande os papéis de Mikha’el e de Gavri’el. De acordo com a Pesikta Rabbati 46:3, eles são dois dos quatro anjos que rodeiam o trono de Deus; todavia, o Talmude afirma que Mikha’el é maior que Gavri’el. Mikha’el foi o anjo que mandou Avraham não sacrificar Yitzchak (Midrash Va-Yosha em A. Jellinek, Beit-HaMidrash 1:38, referindo-se a Gênesis 22:11). De acordo com o Êxodo Rabbah 18:5, foi Mikha’el quem derrotou Senaqueribe e o exército assírio (2Reis 19:35) […] Ester Rabbah 7:12 declara que foi Mikha’el quem defendeu os judeus contra todas as acusações de Hamã. Quando o Messias vier, Mikha’el e Gavri’el o acompanharão e combaterão o mau (Alphabet Midrash Of Rabbi Akiva).[11]
Stern cita alguns comentários e literaturas judaicas (Aggadah, Peskita Rabbati, Talmude, Êxodo Rabbah, Ester Rabbah) e em nenhum deles Miguel é apresentado com algum status de divindade, mas sempre como um ser angelical.
Segundo Russel Norman Champlin[12], nos apócrifos Testamento dos Doze Patriarcas, Testamento de Levi, Assunção de Moisés, Testamento de Daniel, I Enoque Miguel é citado, porém sempre como (arc) anjo.
Stern [13] mostra um cenário, na literatura judaica, onde Miguel é confundido com o Messias.
A literatura cabalística (ocultismo judaico) exalta ainda mais o papel de Mikha’el. Associam-no, ou até mesmo identificam-no, com o anjo Metraton, este mesmo, às vezes, comparado com o Messias.
Acho que o que diz a Cabala não deve servir nem para os adventistas.
Dentre os Manuscritos do Mar Morto, estão os escritos chamados Os Preceitos que foram encontrados na caverna 1. Esse conjunto de manuscritos se divide em O Preceito da Comunidade, O Preceito de Damasco, O Preceito do Messianismo, O Preceito da Guerra, O Pergaminho do Templo, Os Iníquos e os Santos e Maldições de Satanás e seus Adeptos. Desse conjunto, destaco O Preceito da Guerra. Geza Vermes [14] diz que essa obra não deve ser encarada como um manual militar da arte da guerra, simplesmente. Para ele o escrito é de caráter teológico e aponta para a luta entre os espíritos da Luz e das Trevas. Um trecho do manuscrito diz:
Eles deverão inscrever nos escudos das torres: no primeiro, Micael, [no segundo, Gabriel, no terceiro,] Sariel, e no quarto, Rafael. Micael e Gabriel (postar-se-ão à direita, e Sariel e Rafael à esquerda) […] eles armarão uma cilada a […]
Neste excerto, Micael (Miguel) é apresentado junto a outros anjos, fato que o concebe como sendo um ser criado igualmente aos outros. Esse conceito de diversos arcanjos, sete ou quatro, é encontrado com frequência nos escritos do pós-exílio (Tobias 12:15; 1 Enoque 9:1).
No judaísmo helenista, consoante J. N. D. Kelly[15], a piedade popular compreendia que a vontade de Deus era executada no mundo pelos (arc) anjos, dentre os quais, existia um certo Uriel que controlava as estrelas. O autor ainda destaca que Miguel e Gabriel são seres que estão diante do trono de Deus intercedendo pelos homens. Champlin lembra que no Testamento dos Doze Patriarcas, Miguel é apresentado como intercessor em favor dos santos de Israel e no Testamento de Levi, Miguel intercede entre Deus e os homens [16].
De maneira geral, está evidente que no judaísmo antigo Miguel é visto mesmo como mais um (arc) anjo.
Miguel o Arcanjo ou o arcanjo Miguel?
Batchelor, em seu artigo já citado (Who is Michael the Archangel?) escreve:
Primeiro, vamos examinar o significado de algumas palavras e nomes. No Novo Testamento grego, a palavra “anjo” significa “mensageiro”, e “arc” significa “chefe, principal, maior, ou mais elevado.” Então, “arcanjo” significa simplesmente “mais elevado ou importante mensageiro.” O nome hebraico “Miguel”, encontrado no Antigo Testamento, significa “quem é como Deus” ou, por vezes, ele forma uma pergunta: “Quem é como Deus?” Então o título Miguel o Arcanjo pode ser traduzido como “O maior mensageiro que é Deus”.
Há aqui, a meu ver, uma confusão. Não existe na Bíblia o título Miguel o Arcanjo, mas sim o título arcanjo referente a Miguel, e isso, em minha opinião, faz diferença. Judas diz “[…] o arcanjo Miguel […]” (v. 9). Estamos diante de um ser cuja categoria é arc (prefixo que significa “mais elevado”) e este ser é um anjo (palavra que significa “mensageiro”), cujo nome próprio é Miguel (nome que traduzido significa “quem é como Deus?”). Desta maneira, o que temos é Miguel, cujo nome significa “quem é como Deus?”, um mensageiro angélico da mais elevada categoria dentre os seus pares. De quem ele é mensageiro? Do Deus Eterno, Aquele a quem o seu próprio nome honra inquirindo: “quem é como Deus?”. Ressalto que o pressuposto de não existir outra pessoa igual a Deus deve ser levado em conta literalmente e que a pergunta é de caráter retórico.
Se não for corrigida a maneira como Batchelor apresenta o suposto título Miguel o Arcanjo, de alguma maneira teremos que concordar com a tradução “o maior mensageiro que é Deus” proposta por ele. O jogo de palavras usado é perigoso.
Um detalhe importante do conteúdo de Judas 9 e de toda a epístola é que o autor faz uso de literaturas apócrifas para compor seu texto. Champlin[17] diz que o autor tinha a sua frente o apócrifo de Enoque. Informa também que o autor se valeu do apócrifo Ascensão de Moisés para escrever o versículo 9. De igual modo, Stern diz que Judas, quando escreve o versículo 9, está aludindo ao Testamento de Moisés (Ascensão de Moisés e Testamento de Moisés são o mesmo livro). O Comentário Bíblico Vida Nova[18] ao trazer os comentários de David H. Wheaton sobre o verso 9 e toda a epístola de Judas, faz menção também do apócrifo Assunção de Moisés como sendo o pano de fundo da exposição sobre a luta entre Miguel e Satanás pelo corpo de Moisés. Miguel, tanto no apócrifo de Enoque, bem como no Testamento de Moisés, é apresentado como um arcanjo, uma categoria elevada de anjo criado por Deus.
Diante disso, só posso admitir que o autor inspirado fala de Miguel como sendo um arcanjo criado por Deus. Ele segue o que diz a tradição judaica helenista. Ele classifica Miguel como sendo um arcanjo. Mas não fala de um título nos termos que apresenta Batchelor. Repito: não há na Bíblia o título Miguel, o Arcanjo, mas sim o arcanjo que é Miguel. Não há nenhum sinal por parte de Judas dando a entender que ele acredita ser Miguel o próprio Senhor Jesus Cristo. Isso fica evidente quando ele escreve: “não se atreveu a proferir juízo de maldição contra ele.” Ora, se Miguel fosse o próprio Senhor Jesus Cristo o autor jamais teria usado tais palavras, pois isso seria blasfêmia visto que o próprio Deus pode decretar livremente juízos contra satanás. Jesus Cristo é o Senhor dos exércitos; o General dos exércitos do céu e da terra. O fato do arcanjo Miguel não se atrever a falar contra satanás depõe contra qualquer tentativa de fazer dele a Segunda Pessoa da Trindade. O próprio Jesus, durante o seu ministério, impetrou contra satanás um juízo ao dizer “chegou o momento de ser julgado este mundo, e agora o seu príncipe será expulso” (Jo 12:31). Ser “expulso” é claramente um juízo de maldição. Ou seria de benção?
“O Senhor te repreenda”
O arcanjo Miguel disse a Satanás: “[…] o Senhor te repreenda” (Jd 9). Sobre essas palavras Batchelor diz:
Esta passagem levanta outra questão válida. Algumas pessoas ficam confusas por causa deste versículo de Judas onde Miguel repreende o diabo. Eles perguntam: Se Miguel é realmente um outro nome para Jesus, então porque é que ele invoca o nome do Senhor, quando repreende Satanás? Porque Ele mesmo não o faz, como fez quando tentado no deserto? “Então ordenou-lhe Jesus: Vai-te, Satanás”. (Mateus 4:10).
[…] se […] há alguma dúvida nesta questão, temos a clara Escritura em Zacarias 3:2, onde o Senhor fala a mesma coisa que Miguel fala em Judas. Ele invoca o seu próprio nome quando repreende o diabo. “E o Senhor disse a Satanás, O SENHOR te repreende, Satanás!”
O paralelo feito pelo escritor adventista não procede. Existe uma diferença fundamental entre uma fala e outra.
Em Zacarias 3:2 que diz “[…] o Senhor disse a Satanás: O Senhor te repreende, ó Satanás […]” temos uma expressão estranha. Porém, está claro que é o Senhor que diz o que está escrito. Esta estranha expressão significa, simplesmente, “Eu, o Senhor, te repreendo”. Em Judas 9 não há outra maneira de se ler além de “o Senhor te repreenda”.
O grande diferencial entre o texto de Zacarias 3:2 e o de Judas 9 é que no primeiro não existe nenhum constrangimento em se repreender a Satanás, ao passo que no segundo Judas diz que o anjo em questão “não se atreveu” em fazer isso. Podemos dizer que no primeiro caso houve um “atrevimento” porque o nível de autoridade era divino, inimitável, ao passo que no segundo não havia nível de autoridade suficiente para tanto e por isso há um direcionamento a uma segunda Pessoa.
No versículo primeiro de Zacarias 3 é dito que o sumo sacerdote estava diante do Anjo do Senhor. Este Anjo do Senhor tem sido compreendido como uma teofania, pois ele aparece no texto veterotestamentário sempre com atribuições e qualificações divinas (Gn 16:7ss; 21:17; 22:11, 15ss; Ex 3:6; 13:21-22; Nm 22:22; Js 5:14; Jz 2:1-5; 1Cr 21:15; Ez 1:10-13). Alguns estudiosos creem que ele é o Logos pré-encarnado, mas não se pode ter certeza disso. Porém, é fato que ele se apresenta como sendo o Senhor. Em seu paralelismo desajeitado Batchelor tenta enxergar nesse Anjo do Senhor a pessoa do arcanjo Miguel.
A fala do arcanjo Miguel, “o Senhor te repreenda”, não pode ser a fala do Senhor Jesus Cristo em qualquer sentido, mas de um ser angélico.
A palavra grega para “atreveu” em Judas 9 é tolmao que pode ser traduzida também por “ter coragem de” segundo Fritz Rienecker e Cleon Rogers. Substituindo o verbo “atreveu” pela expressão “ter coragem de” fica assim o versículo:
Contudo, o arcanjo Miguel, quando contendia com o diabo e disputava a respeito do corpo de Moisés, não teve coragem de proferir juízo infamatório contra ele; pelo contrário, disse: O Senhor te repreenda!
Será que podemos admitir que em algum nível a Segunda Pessoa da Trindade poderia experimentar falta de coragem para estabelecer algum juízo sobre alguma de suas criaturas? Creio ser isso impensável.
Outro destaque ainda tratando da epístola de Judas é a análise contextual, uma regra básica da hermenêutica. O assunto abordado no versículo 9 não é deslocado e nem é o assunto principal. O autor quando traz a baila esse verso faz isso para realçar uma censura anteriormente feita aos gnósticos.
É sabido que a Igreja primitiva foi muito perturbada pelo gnosticismo. Esse movimento reivindicava, assim como as religiões de mistério dos gregos, ser o detentor de algum conhecimento esotérico. Esse sistema era eclético, pois ele combinava elementos das religiões de mistério pagãs, da filosofia grega do cristianismo e do judaísmo. Até metade do segundo século D.C., o gnosticismo competiu violentamente com o cristianismo vindo a perder força no terceiro século D.C. Paulo escreveu combatendo o gnosticismo, João, Pedro e Judas.
No caso de Judas, sua “batalha pela fé” era contra o gnosticismo do tipo antinomiano. Suas práticas pecaminosas eram a imoralidade (4), perversão (5, 19), negação da salvação plena ofertada aos homens (21-23) e rejeição aos governos e difamação das autoridades superiores (8). A chave para a compreensão apropriada do versículo 9 está nestes últimos pecados dos gnósticos.
- “Rejeitam governos”
A palavra grega usada aqui é kuriotes que pode ser traduzida por “senhorio”, “autoridade”. “A palavra indica o poder majestoso que um rei usa em seu governo”. Os falos mestres criam que estavam acima de todo tipo e forma de restrição. Eles zombavam tantos das restrições sociais como das pessoais. Mas, os desprezos dos gnósticos não se limitavam à esfera das autoridades humanas.
- “Difamam autoridades superiores”
As “autoridades superiores” referidas aqui são “anjos”.
A palavra grega que temos aqui é doxas que traduzida é “gloriosos”. Afirma Joseph B. Mayor[20] que
a palavra refere-se aqui a seres angelicais. Eles são os anjos, a quem eles blasfemavam, supondo que eles tinham criado o mundo em oposição à vontade do Deus verdadeiro.
Champlin [21] e Wheaton [22], respectivamente, dizem: “As autoridades aqui referidas são, especificamente, as de natureza espiritual […] os anjos […]”. “É usado como referência a anjos.”
Algumas bíblias comentadas dizem a mesma coisa: “Uma referência a anjos” (Bíblia Anotada). “Os anjos” (Nova Tradução na Linguagem de Hoje). A Bíblia Vida Nova ao falar das “autoridades superiores” remete-nos para 2Pe 2:10 e comenta: “Autoridades superiores (lit. as glórias). São os poderes invisíveis. Cf. Jd 8, 9 onde o diabo e anjos são especificados”.
Veja as seguintes traduções bíblicas: “Da mesma forma é que essas pessoas, em seu delírio, conspurcam a carne, menosprezam a Soberania, insultam as Glórias” (Tradução Ecumênica da Bíblia). “Do mesmo modo esses homens têm visões que os fazem pecar contra o próprio corpo deles. Desprezam a autoridade de Deus e insultam os gloriosos seres celestiais” (Nova Tradução na Linguagem de Hoje).
Essa atitude de desprezo dos gnósticos em relação aos seres angélicos é veementemente reprovada por Judas. Para dar o tom da gravidade do pecado deles é feita menção ao episódio extraído do apócrifo Ascensão de Moisés. Ao dizer que “o arcanjo Miguel quando contendia com o diabo, e disputava a respeito do corpo de Moisés, não se atreveu proferir juízo infamatório contra ele”, Judas queria mostrar aos destinatários da epístola e aos falsos mestres que aquela prática de menosprezar os anjos não encontrava lugar nem entre eles. Mesmo o arcanjo Miguel, um arc, respeitou a autoridade do líder dos anjos caídos chamado satanás e dirigiu-se a este de maneira repreensiva dizendo: “o Senhor te repreenda.”
Então, como disse anteriormente, o versículo 9 não está solto na epístola, e nem tampouco é o assunto principal. Judas cita esse trecho do livro Ascensão de Moisés exatamente para enfatizar a gravidade do pecado dos gnósticos quando desprezavam doxas. É nesse contexto de descaso com os poderes angelicais que Judas cita um arcanjo, Miguel, um anjo dotado de extremo poder, sendo cuidadoso quanto ao trato, mesmo em batalha, em relação a outro anjo poderosíssimo, mesmo que caído, chamado satanás.
Uma rápida exposição dos vocábulos hebraicos echad e rison
Daniel 10:13 diz:
Mas o príncipe do reino da Pérsia me resistiu por vinte e um dias; porém Miguel, um dos primeiros príncipes, veio para ajudar-me, e eu obtive vitória sobre os reis da Pérsia.
O anjo Gabriel diz a Daniel (10:12-14) que Miguel foi enviado para auxiliá-lo no embate contra o príncipe da Pérsia. A forma como Gabriel se refere a Miguel é interessante: “um dos primeiros príncipes”. A palavra hebraica usada para “um” é echad e ela, segundo Laird Harris, Gleason Archer e K. Waltke[23] pode ser traduzida como o ordinal “primeiro”. Miguel é um dentre outros semelhantes (príncipes).
Miguel é também rison, “primeiros”, que “no hebraico posterior […] passou a significar o mais elevado em posição ou autoridade (i.e., principal, cabeça). O arcanjo Miguel é retratado na posição primeiro príncipe”, diz o Dicionário do Antigo Testamento James Strong [24]. O significado básico dessa palavra é “primeirio” em uma série; o “mais proeminente” em uma série, diz o Dicionário Vine [25]. Isso está em perfeita harmonia com a apresentação dos “sete anjos da presença” – Miguel, Gabriel, Uriel, Rafael, Raquel, Saracael e Remiel. Gabriel, um componente desse grupo, enfrentando um anjo caído de alta hierarquia, é socorrido por Miguel, “cabeça” desse grupo e, portanto, de maior autoridade, mais proeminente em uma série.
As traduções, Nova Versão Internacional, Almeida Revista e Atualizada, Nova Tradução na Linguagem de Hoje, Almeida Atualizada, Almeida Corrigida e Revisada, Reina Valera (espanhol), Sagradas Escrituras (espanhol – 1569); Español Moderno, Giovanni Diodati Bible (italiano – 1649), Bíblia Ave Maria, Bíblia da CNBB, La Biblia de Jerusalén (espanhol), Vulgata Latina e Septuaginta, traduzem exatamente como um numeral que indica posição num ranking.
Samuel J. Schultz, que foi professor de Antigo Testamento no Wheaton College, EUA, chama Miguel de “um dos primeiros príncipes”[26]. William Sanford LaSor juntamente com David Allan Hubbard e Frederic William Bush, todos professores de Antigo Testamento no Seminário Teológico Fuller, EUA, dizem: “Miguel, um dos primeiros príncipes”. Albert Barnes comenta o versículo em apreço:
[…] “the first”. That is, the first in rank of the “princes”, or the angels. In other words, Michael, the archangel. The proper meaning of this name is, “Who as God”, and is a name given, undoubtedly, from some resemblance to God. The exact reason why it is given is angels would instinctively ask, “Who, after all, is like God? Even this lofty angel, with all his glory, cannot be compared to the high and lofty One.” [27]
Barnes diz que “o primeiro” é uma referência ao primeiro entre os anjos. Trata-se de um ranking dos “príncipes” ou dos anjos. Segundo ele, a razão exata do nome dado, “Quem é como Deus?”, não está esclarecida, mas entende-se que mesmo esse tipo de anjo, de elevada hierarquia, não pode ser comparado com Deus.
É preciso notar que até Matthew Henry chama Miguel de “um dos principais príncipes de Deus” [28], embora depois cometa a heresia de confundi-lo com Jesus Cristo, o Deus ao qual nem o mais elevado (arc) anjo pode se assemelhar.
Batchelor diz que essa tradução, “um dos primeiros príncipes”, é equivocada. Para ele, a melhor tradução seria “‘primeiro’, como é a esposa do presidente sendo chamada de ‘primeira-dama.’” Resta demonstrar que cabe.
Penso que essas breves articulações evidenciaram que o arcanjo Miguel não é o Senhor Jesus Cristo. Miguel é um anjo, de alta hierarquia (arcanjo), e, portanto, um ser criado pelo Senhor Jesus Cristo. Jesus Cristo, por antonomásia, jamais assumiu uma natureza angélica (Hb 2:16). É isso que ensinam as Escrituras. Um cuidado interpretativo não leva a outra conclusão.
Resultados da confusão Adventista
Tudo que foi dito anteriormente para qualificar Miguel como um anjo pertencente a uma classe de outros anjos semelhantes (arcanjos) da qual ele foi posto como maior autoridade, portanto, possivelmente, um pouco mais dotado em poder, não tem nenhum peso para adventistas. O que conta para eles é afirmar que Jesus Cristo é Deus e tomar por certo que “arcanjo Miguel” não passa de um título do Senhor Jesus. Desse modo, folgam com a “certeza” de não estarem negando a divindade do Cristo reduzindo-O à categoria angélica. Mas, logicamente, não há razão para descansarem. Não há razão porque não existe um autor canônico que diga que “arcanjo Miguel” seja um título de Jesus; que apresente o arcanjo Miguel como divino; que atribua ao arcanjo Miguel atributos divinos, como no caso do Anjo do SENHOR do Antigo Testamento; que associe o arcanjo Miguel à divindade por inferência qualquer que seja. Mas, autores bíblicos apresentam o arcanjo Miguel como um ser pertencente a uma classe de iguais – ou seja, ele não é único como o Unigênito; o arcanjo Miguel, como um de uma série, só pode ser criatura – Jesus Cristo criou todas as coisa (Cl 1:15-16); o arcanjo Miguel teme impetrar um juízo de maldição sobre satanás (Jd 9) – Jesus Cristo encarnado emitiu juízo contra satanás. Os adventistas apenas inferem que “arcanjo Miguel” seja um título de Jesus Cristo e depois fazem malabarismos argumentativos para justificarem-se. O que mais conseguem é encontrar apoio em alguns comentaristas de renome. Interessante é que, embora eles citem Calvino e eu tenha me referido a esse reformador como quem não se opõe à conclusão que rejeito, ele suspende o juízo sobre a questão: “But as this is not generally admitted, I leave it in doubt […]”. Calvino diz “deixar em dúvida” a questão. [30] Ou seja, o terreno não é tão firme assim.
Dado tudo que disse, creio que as evidências internas e externas não permitem confundir o arcanjo Miguel com Jesus Cristo, pois, o primeiro é um ser angélico, criado pelo Criador.
Agora, vejamos algumas implicações desse absurdo adventista.
- O rebaixamento de Jesus Cristo à categoria dos arcanjos.
Ora, isso é inevitável. Admitindo pela força das evidências que o arcanjo Miguel faz parte de um grupo de arcanjos, defender que “arcanjo Miguel” é um título do Senhor Jesus é confundir as pessoas. Logo, há um reducionismo quanto à questão da natureza.
- A divinização do arcanjo Miguel.
Do ponto 1, depreendemos que o arcanjo Miguel acaba por ser divinizado já que ele é uma pessoa distinta de Cristo, mas os adventistas tem-no como sendo este último.
- Honra e serviço à criatura em detrimento do Criador.
Mesmo que os adventistas não invoquem Jesus Cristo cotidiano e rotineiramente usando o título arcanjo Miguel, no mínimo, ao ler na Bíblia o que eles chamam de título honorífico do Senhor Jesus, prestarão a honra própria de Deus ao arcanjo Miguel.
Ao ensinar tal coisa, honrarão um arcanjo, uma criatura, como sendo Deus.
No catolicismo, ainda se discute a questão da dulia, mas, no adventismo, nem esse zelo é possível.
- Gnosticismo.
Uma espécie de gnosticismo reavivado é praticado. O arcanjo Miguel como sendo Jesus Cristo, o SENHOR que resgata o homem da perdição, implica, em última análise, na doutrina gnóstica de que os anjos (aeons) auxiliam na redenção do homem.
- Isso é paganismo
Para os mais diversos lados que olho enxergo o paganismo no seio da cristandade. Olhando para essa doutrina estranha de atribuição de divindade a um anjo, ou de reducionismo da Divindade à categoria angélica, também vejo o paganismo.
- Trata-se de uma heresia.
Por tudo que foi dito, estou certo de que tal ensino é herético, pois tem implicações profundas na cristologia e soteriologia. Também no âmbito da latria, pois a Escritura diz para prestarmos culto somente ao Senhor.
Enfim, mais poderia ser apontado como implicações últimas, mas fico por aqui.
Concluindo
Soa-me estranho, deveras, muito estranho, cristãos concordarem comigo quanto à exposição apresentada e mesmo assim atenuarem o erro adventista como se a maneira como a Bíblia separa Miguel de Jesus Cristo não fosse evidente, clara, cristalina, sem chance de confusão quer seja de pessoas, quer seja para “simplesmente” entender “arcanjo Miguel” como um título honorífico de Jesus Cristo. Causa-me muita estranheza isso. Deixo esse registro de pronto nessa conclusão.
Qual o custo para os adventistas abandonarem esse ensino herético? O preço da conversão. Apenas assim deixarão essa heresia e outras tantas. Por ensinos desse naipeé que não considero adventistas meus irmãos de fé, embora tenha estima por eles já que meu respeito pela pessoa não perpassa pela cor, credo, condição social, mas pelo fato da pessoa ser uma pessoa feita segundo a Imago Dei.
Considero que ainda posso alargar esse texto, mas, encerro por aqui esperando ter demonstrado não existir razão alguma para ler “arcanjo Miguel” na Bíblia e concluir tratar-se de um título honorífico do Senhor Jesus Cristo. Espero também que meus pensamentos tenham sido expostos de forma clara.
Referências
[01] WHITE, Ellen G. Primeiros Escritos, p. 164.
[02] Ibidem. Ajuda ao Entendimento da Bíblia, pp. 1111 , 1112.
[03] Ibidem. Patriarcas e Profetas, p. 336.
[04] MAXWELL.C. Mervyn. Uma Nova Era Segundo As Profecias de Daniel, pp 284 285.
[05] Disponível em http://www.amazingfacts.org/Publications/InsideReport/tabid/123/articleType/ArticleView/articleId/385/Who-is-Michael-the-Archangel.aspx Acesso em 07 dez. de 2016.
[06] Disponível em http://www.biblestudytools.com/commentaries/gills-exposition-of-the-bible/jude-1-9.html Acesso em 07 dez. 2016.
[07] Disponível em http://www.biblestudytools.com/commentaries/gills-exposition-of-the-bible/revelation-12-7.html Acesso 07 dez. 2016.
[08] CALVINO, João. Um Comentário Sobre Daniel, vol. II, p. 253 – 369.
[09] CHAMPLIN, R. Norman. Antigo Testamento Interpretado Versículo Por Versículo, vol.7, p. 4761.
[10] BARCLAY, William. Comentário do Novo Testamento, p. 39.
[11] CHAMPLIN, R. Norman, op. cit., p. 4761.
[12] STERN, David H. Comentário Judaico do Novo Testamento. 2008.
[13] CHAMPLIN, Russel Norman. Enciclopédia de Bíblia Teologia e Filosofia, 2008, volumes 1 e 4.
[14] STERN, op. cit., p. 898.
[15] VERMES, Geza. Os Manuscritos do Mar Morto, 1992, p. 125.
[16] KELLY, J.N.D. Patrística: origem e desenvolvimento das doutrinas da fé cristã, 1994.
[17] CHAMPLIN, Russel Norman. O Novo Testamento Interpretado Versículo Por Versículo, 1983.
[18] CARSON, D. A. (org.) Comentário Bíblico Vida Nova, 2009.
[19] RIENECKER, Fritz; ROGERS, Cleon. Chave Linguística do Novo Testamento Grego, 1995, p. 600.
[20] Apud, ibidem.
[21] CHAMPLIN, op. cit., 1983, p. 336.
[22] In: CARSON, op. cit., p. 2123.
[23] HARRIS, R. Laird; ARCHER Jr., Gleason L.; WALTKE, Bruce K. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, 1998.
[24] BÍBLIA DE ESTUDO PALAVRAS CHAVE. Dicionário do Antigo Testamento de James Strong, p. 1917.
[25] VINE, W. E. Dicionário Vine: o significado exegético e expositivo das palavras do Antigo e do Novo Testamento, p. 245.
[26] SCHULTZ, Samuel J. A História de Israel, p. 358.
[27] BARNES, Albert. Bible Commentary, 2015.
[28] HENRY, Matthew. Comentário Bíblico Antigo Testamento, p. 894.
[29] LASOR, William S.; HUBBARD, David A.; BUSH, Frederic W. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 632.
[30] CALVIN, John. Commentary on the prophet Daniel, p. 611.
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